Friday, November 25, 2005

Transcrição da Carta ao Bispo do Porto (o caso da Índia)

Ex.mo. e Rev.mo. Senhor Bispo do Porto.

“Uni-vos vós, pois, todos pela liberdade e a paz, vós, caros povos do Leste e Oeste, membros da comum família humana! A paz, a liberdade! Doravante estas palavras já não são objecto de equívocos. Voltaram a encontrar o seu sentido luminoso e original, que foi sempre o nosso, como derivando da vontade do Criador.”
Para quem, como eu, entende que não é possível responder aos inquietantes problemas de hoje senão em termos de liberdade e paz, estas palavras de Sua Santidade, o Papa Pio XII, constituem, a meu ver, uma mensagem a que ninguém, católico ou não católico, pode ficar indiferente.
A mim, causaram-me profunda impressão.
É certo que sou o primeiro a reconhecer que a minha vida pública e, especialmente, a defesa que sempre fiz da liberdade e da paz, têm suscitado as reacções mais diversas e basta a circunstância de ter sido demitido de professor da Universidade do Porto e de tantas vezes, como agora, ter sido preso, para se ajuizar da violência de algumas dessas reacções.
E se eu não aceito, seja a que título for, a perseguição que me vem sendo movida desde 1945, compreendo, no entanto, que se discorde em absoluto das minhas posições políticas.
Seja, porém, como for, a evolução dos últimos acontecimentos e a mensagem de Sua Santidade demonstram, sem sombra de dúvida, que a liberdade e a paz são valores autênticos, insusceptíveis de provocar equívocos; impõem-se até cada vez mais, como factor de aproximação entre os homens e as Nações, independentemente das suas crenças religiosas, ideias políticas ou concepções de vida.
Mas admitamos, para maior objectividade, que aqui ou além o equívoco ainda persista.
Nesse caso, mais uma razão para nos dispormos a ser colaboradores activos na definição dos conceitos de liberdade e paz e dos termos da sua aplicação prática – e isto só é possível de uma maneira franca e aberta, num clima de livre discussão e convivência.
E é para mim uma grande satisfação o saber que, amanhã, num clima de liberdade e de paz, eu tenho uma posição moral ligada aos actos públicos que já pratiquei e às afirmações públicas que já proferi.
Ora, é em consequência de uma posição que entendi dever tomar em defesa da liberdade e da paz que, neste momento, me encontro preso na Colónia Penal de Santa Cruz do Bispo.
Com efeito, em Agosto de 1954, subscrevi, juntamente com a Senhora Engenheira D. Virgínia Moura, o operário Senhor Albertino Macedo e o Dr. José Morgado, uma Nota que enviámos à Imprensa, com o pedido de publicação, em que traduzíamos o pensamento do Movimento Nacional Democrático perante o caso de Goa, Damão e Diu.
Nessa Nota defendíamos o princípio de que o diferendo com a União Indiana devia ser resolvido por negociações, tendo em consideração as legítimas aspirações dos Povos de Goa, Damão e Diu. Apelámos também para o Senhor Presidente da República no sentido de, usando dos poderes que a Constituição lhe confere, formar um governo que pratique uma política de paz e respeito pelos direitos fundamentais do cidadão.
Fazíamos ainda uma crítica desassombrada à actuação do governo, tanto no que se refere às liberdades consignadas no Artº 8º da Constituição Política da República Portuguesa, como no que se refere ao conjunto dos problemas ligados ao nível de vida do Povo Português.
Não só se impediu a publicação dessa Nota na Imprensa diária, como ainda nos meteram na prisão. Passados alguns dias prenderam também o Senhor Arquitecto António Lobão Vital, que não teve qualquer responsabilidade na elaboração da Nota, nem tão pouco era seu signatário. Serviu de pretexto à sua prisão o simples pormenor, sem qualquer significação, de, nalgumas cópias enviadas aos jornais, levarem algumas palavras por ele escritas, a pedido de um dos signatários.
Fomos todos processados sob acusações que vão ao ponto de envolverem traição à Pátria, chegando-se, em certa fase do Processo, a pedir para nós cinquenta anos de prisão, seguidos ainda de medidas de segurança com internamento.
Julgados em Abril-Junho de 1955, o Tribunal Plenário do Porto afastou tudo aquilo que punha em causa o nosso amor à Pátria e deu até como provado que eu tenha prestado “grandes serviços à Pátria e à Humanidade”.
Em face da preocupação que tantas vezes tem havido em atribuir-me propósito de atentar contra o prestígio do nosso País, julgo-me autorizado a trazer ao conhecimento de V. Exa. Rev.ma. que ainda há dias, ao recomeçarem as actividades do Centro de Estudos Matemáticos do Porto, os Prof. Sarmento de Beires e Sebastião Silva, puseram em relevo a minha acção docente e de investigador. Mais recentemente, subscrito pelo Irmão Teodoro, conhecido botânico, que procura conseguir a colaboração de investigadores europeus para maior desenvolvimento da vida científica do Brasil, recebi um convite para dirigir um curso de especialização universitário, em Porto Alegre.
Revertendo ao Processo devo acrescentar que nós, os signatários da Nota fomos condenados de 18 a 19 meses de prisão correccional e o Arquitecto Senhor António Lobão Vital a 9 meses, saíndo em liberdade por ter já nessa altura mais de dez meses de prisão preventiva.
Embora a sentença do Tribunal Plenário fosse um começo de reparação para os graves prejuízos morais e materiais que este processo nos havia causado, não era ainda a absolvição pura e simples a que nos julgamos com direito e, por isso, eu e os signatários recorremos para o Supremo Tribunal de Justiça, pelo que fomos postos em liberdade sob caução.
O Supremo Tribunal, aceitando alguns dos fundamentos da defesa, anulou o julgamento e ordenou a sua repetição. Compelidos pelo 2º Juízo Criminal do Porto, através de despachos proferidos já em férias judiciais, recolhemos todos cinco à cadeia e assim nos encontramos, sujeitos às gravíssimas acusações iniciais, sem ainda ter sido marcado o segundo julgamento.
A Senhora Engenheira Virgínia Moura, após ter passado alguns dias na Cadeia Civil do Porto, foi transferida para as prisões privativas da PIDE. Quanto à sua estadia na Cadeia Civil sei que muito a sensibilizaram as atenções que lhe dispensaram o Rev.do. Sacerdote da Cadeia e a Senhora Doutora D. Maria José, da Conferência de S. Vicente de Paula. Quanto às condições em que se encontra na PIDE, sei que ainda não deixou de estar isolada e que, há perto de um mês, lhe comunicaram que ficava proibida de se corresponder com seu Marido, o Arquitecto António Lobão Vital.
Estou certo que V. Ex.cia. Rev.ma. sentirá melhor que ninguém a gravidade da nossa situação, e em especial, a do meu companheiro, António Lobão Vital e sua Esposa.
Todos nós achamos perfeitamente legítimo que V. Ex.cia. Rev.ma. ou qualquer entidade discorde, em absoluto, da posição que tomámos relativamente ao caso de Goa, Damão e Diu.
Mas os imperativos morais do nosso tempo, a que não se pode responder senão em termos de liberdade e de paz, firmam-nos na certeza de que, ao expormos o nosso pensamento político usamos de um dos direitos fundamentais da pessoa humana e cumprimos um dever de cidadãos conscientes das nossas responsabilidades perante a Pátria.
E é, precisamente por isso, não libertos de um Processo, só possível por não nos ter sido reconhecido o direito de livre discussão, que me permito pôr à consideração de V. Ex.cia. Rev.ma. o pronunciar-se, perante o Tribunal, como minha testemunha.
Sugiro como minha testemunha por ser esta tavez a única fórmula jurídica pela qual V. Ex.cia. Rev.ma. possa intervir directamente no Tribunal em defesa da Verdade.
Escuso de acrescentar que, o meu Advogado, Senhor Doutor Armando Bacelar, estará à disposição de V. Ex.cia. Rev.ma. para quaisquer informações complementares referentes ao Processo.
E sinto-me perfeitamente à vontade para me dirigir a V. Ex.cia. Rev.ma. porque o que está em causa não é o interesse individual de cada um de nós cinco mas valores inerentes à consciência moral e que, por isso mesmo, antecedem quaisquer considerações específicas de natureza política.
Confesso a V. Ex.cia. Rev.ma. que muitas vezes me tenho surpreendido a protestar intimamente, no silêncio da minha cela, contra o evidente desinteresse em pôr termo a todas estas limitações da nossa liberdade, o que nos coloca perante a perspectiva de estarmos ainda na prisão, durante a quadra de Natal, que todos os Povos, e muito principalmente o Povo Português, consagram à Família e a tudo quanto ela simboliza para a vida individual e colectiva.
Apresento a V. Ex.cia. Rev.ma. a expressão da minha mais elevada consideração.

Ruy Luís Gomes
Colónia Penal de Santa Cruz do Bispo,
em 29 de Novembro de 1956
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