Friday, November 14, 2008

O exemplo de Bento de Jesus Caraça 23 anos depois do 25 de Abril

O exemplo de Bento de Jesus Caraça 23 anos depois do 25 de Abril
Álvaro Cunhal
na Universidade Popular de Setúbal
Setúbal, 18 de Abril de 1997
O tema proposto para este colóquio é «o exemplo de Bento de Jesus Caraça e a sua actualidade». É um tema aliciante:
- para melhor conhecimento desse insigne português e da época em que viveu;
- pelo estímulo que representa para aqueles que querem um melhor futuro para o nosso povo e a nossa pátria.
Abordarei pois alguns aspectos fundamentais do exemplo de Bento de Jesus Caraça.
Antes de mais é de sublinhar que Bento de Jesus Caraça deu um exemplo de coerência do pensamento e da acção.
Não se limitou a pensar que a cultura é um dos principais valores da sociedade e que o povo tem direito à cultura. Pensando assim, tornou-se um activo difusor dos conhecimentos e ideias, um activista da democratização da cultura.
Não se limitou a pensar que a ditadura fascista era um regime opressor que reprimia com violência as liberdades e direitos fundamentais dos cidadãos. Pensando assim tornou-se um activo militante da luta antifascista.
Não se limitou a pensar que a guerra é um crime contra a humanidade. Pensando assim tornou-se um activo militante da luta pela paz.
Não se limitou a pensar que o sistema capitalista é um sistema de exploração que necessita de ser ultrapassado com a construção de uma sociedade nova. Pensando assim, tornou-se um militante do Partido Comunista.
Na actual situação nacional e mundial, quando proliferam a mentira, a falsidade, o oportunismo, este exemplo de coerência tem inteira actualidade como um valor na conduta dos seres humanos, de que a sociedade prementemente necessita.
Bento de Jesus Caraça deu o exemplo de um homem da cultura, no mais profundo significado desta palavra e a sua intervenção social constituiu uma contribuição efectiva para a democratização cultural.
Combatia o monopólio da cultura pelas classes dominantes e por elites, e considerava que o acesso do povo à fruição e à criação culturais é um elemento imprenscindível de uma sociedade e de regime verdadeiramente democráticos.
Professor universitário revelou particular talento na difusão de conhecimentos científicos e estimulou a formação de valiosos quadros de cientistas.
Foi organizador e dinamizador das Universidades Populares, como é o caso que a Universidade Popular de Setúbal fez lembrar ao re­ferir que foi Bento de Jesus Caraça que a fundou em 1931 e ao editar em 1996 a intervenção de Bento de Jesus Caraça intitulada «As Universidades Populares e a Cultura» feita em Setúbal nesse mesmo ano de 1931.
Em Lisboa, na Universidade Popular orientou e promoveu importante trabalho cultural, no qual se tornaram célebres as suas conferências bem como de outros destacados antifascistas.
Orientou e impulsionou ainda uma notável série editorial (Colecção Cosmos).
Na situação presente, em que a cultura é submetida e submergida por orientações e realizações determinadas por interesses das forças do poder do capital, o exemplo de Bento de Jesus Caraça tem inteira actualidade e é justamente de lembrar pela notável plêiade de inte­lectuais portugueses que na complexa situação actual dão exemplos dignos do exemplo de Bento de Jesus Caraça.
Porque este colóquio tem lugar na Universidade Popular de Setúbal, que ele próprio fundou em 1931, comecei por referir, o exemplo de Bento de Jesus de Caraça na área cultural.
É porém de sublinhar que o seu exemplo na área cultural não só é inseparável, como decorria directamente das suas opções ideo­lógicas e políticas.
Assim, Bento de Jesus Caraça deu o exemplo de um firme e dedicado militante antifascista.
O seu nome está ligado à resistência antifascista.
Particularmente significativa foi a sua participação dirigente na criação e desenvolvimento clandestino nos anos 1943/45 do Movi­mento de Unidade Nacional Antifascista (MUNAF) e de 1945 (fim da 2.a Guerra Mundial, com a derrota do fascismo e a manobra pseudo-democrática de Salazar) até à sua morte em 1948, no Movi­mento de Unidade Democrática (MUD) que, ultrapassando a bar­reira da legalidade fascista, se impôs durante alguns anos à luz do dia como expressão legal e semi-legal organizada da resistência antifascista.
Num momento em que no mundo renascem partidos e influên­cias fascistas e neo-fascistas, num momento em que em Portugal reapa­recem responsáveis da ditadura salazarista e marcelista pretendendo fazer esquecer os crimes da ditadura e outros organizam e difundem projectos de extrema-direita sob a capa demagógica do populismo, num momento em que o governo PS e PSD preparam uma revisão da Constituição e novas leis eleitorais que, a serem realizadas, repre­sentariam a completa subversão do regime democrático, — o exem­plo de Bento de Jesus Caraça como intelectual activo e dedicado militante democrático antifascista tem inteira actualidade.
Na vida política, social e cultural, Bento de Jesus Caraça foi mais longe. Deu exemplo de um intelectual companheiro de luta da classe operária, da luta em defesa dos seus interesses de classe, dos seus ideais de transformação revolucionária da sociedade.
Considerava convictamente que, além da libertação da ditadura e da conquista da liberdade, os grandes problemas da humanidade não podem ser resolvidos e a exploração, a opressão, as grandes desigualdades e injustiças sociais não podem ser superadas no quadro do sistema capitalista. Bento de Jesus Caraça foi comunista, membro do Partido Comunista Português.
Como militante comunista fez parte do Conselho Nacional de Unidade Antifascista (órgão supremo do MUNAF) e da Comissão Central do MUD.
Pela sua influência foi um dos obreiros desses grandes movimentos unitários. Sabia aliar o respeito pelas opiniões divergentes e pela busca de acordos unitários com a firmeza da opção política comunista que fizera.
Quando assistimos em Portugal a toda uma campanha de forças e elementos reaccionários, que copiando o que já Salazar dizia, se proclamam eles, reaccionários, «os verdadeiros democratas» e acusam os comunistas de totalitários inimigos da demo­cracia, quando se desenvolve uma gigantesca campanha de pressão ideológica, discriminações sociais, falsificações históricas, contra o PCP; - o exemplo de Bento de Jesus Caraça, intelectual comunista obreiro da unidade democrática, intimamente ligado à luta e ideias dos trabalhadores e do seu partido, tem particular actualidade.
E para terminar,
Bento de Jesus Caraça deu um exemplo de sinceridade, de simplicidade e modéstia na sua intervenção social. Nos diversos aspectos da sua actividade (política, social, cultural) os valores éticos aparecem sempre em relevo.
Foi um protagonista que não protagonizava. Um ser humano que convivia com outros seres humanos num plano de respeito e compreensão. Um homem de muito saber que convivia com os jovens como se jovem fosse.
Quando hoje impera a política-espectáculo, a impunidade da mentira e da falsidade, o carreirismo, a corrida à ribalta daqueles que crêem que a exibição e a máscara é que dão prestígio e fama, o exemplo de simplicidade e modéstia de Bento de Jesus Caraça tem a actualidade de uma chamada de atenção, vinda da memória do tempo, de um cidadão que respeita os outros cidadãos, de um verdadeiro amigo, de um camarada.
A Universidade Popular de Setúbal merece bem os apoios necessários para que o seu futuro não mais atravesse as dificuldades e obstáculos que defrontou no passado.
A actividade da Universidade Popular de Setúbal é um estímulo para que outras e novas Universidades Populares sejam criadas e se desenvolvam com os grandes objectivos culturais, democráticos e humanistas que há já mais de 60 anos Bento de Jesus Caraça traçou.

Bento Caraça - insigne intelectual comunista

Fotografia digitalizada por Jorge Rezende
Esta fotografia mostra Álvaro Cunhal num passeio no Tejo na época em que se relacionou mais estreitamente com Bento de Jesus Caraça
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Bento Caraça - insigne intelectual comunista
(Extractos da Entrevista de Álvaro Cunhal ao Avante!)
Conheci-o nos anos 30. Primeiro na Universidade Popular Portuguesa onde assisti a várias das suas conferências e tive ocasião de falar com ele no quadro de um relacionamento com outros conferencistas. Depois ainda nessa época, em encontros fortuitos. Eu era jovem, mas já então era militante do PCP, da direcção da Juventude Comunista e com intensa actividade no movimento associativo dos estudantes. Apenas para melhor se compreender o meu relacionamento com Bento de Jesus Caraça, lembro que em 1935 passei à clandestinidade e fui a Moscovo, e em 1937 fui preso e estive cerca de um ano na prisão. A relação com B. Caraça teve logo à partida presentes dois pressupostos. Eu via nele um intelectual conhecido e de grande valor considerado como comunista embora então não soubesse se era ou não membro do Partido. E ele via em mim um jovem conhecido como militante comunista já então com certa responsabilidade.
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(A Universidade Popular), com a influência qualificada de B. Caraça, tratou-se de uma actividade cultural de grande projecção. O grupo de conferencistas incluía pessoas de valor como Dias Amado, Mário de Castro. Também de meu pai, Avelino Cunhal. Eram pessoas com diferenciadas personalidades individuais mas identificadas no fundamental das suas opções socio-políticas. B. Caraça, cientista, professor, pedagogo, homem de cultura, pronunciava-se contra a cultura como monopólio de uma elite. Explicitava que um sábio pode não ser um homem culto e um homem culto pode não ser sábio. A cultura deveria ser um valor e um bem do povo. Daí a defesa da democratização da cultura como elemento de liberdade do ser humano e da democracia política.
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A cultura exige conhecimento e o povo deve ter acesso à aquisição do conhecimento. É de lembrar a ideia sublinhada por B. Caraça de que, para tal, o problema económico é aquele que tem de ser resolvido em primeiro lugar. A actividade cultural de B. Caraça, como professor, como conferencista, como ensaísta, como orientador de actividades editoriais, é inseparável das suas concepções acerca da sociedade existente, da cultura, da democracia, dos valores político-éticos, do ideal de uma transformação profunda da sociedade de assumido conteúdo humanista.
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Ele foi o grande orientador, animador e dinamizador de uma valiosa série de obras editadas pela Cosmos. Tive ocasião de falar numerosas vezes com ele a este respeito. Posso mesmo dar um testemunho directo. Propôs-me que escrevesse um volume sobre "A descoberta da Terra", ou seja o avanço histórico do conhecimento pelo ser humano do nosso planeta. Ainda há dias, arrumando papéis, encontrei muitas centenas, para não dizer milhares, de folhas com notas de leitura, apontamentos, capítulos já redigidos, ilustrações para esse trabalho. Não teve seguimento porque em 1941, pouco depois de libertado após uma segunda prisão, passei de novo à clandestinidade.
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Ele dava valor ao valor dos jovens. Tinha a sua própria experiência: professor universitário aos 25 anos, professor catedrático antes dos 30. Criava nos alunos o gosto pelo estudo, pela ciência e pela cultura, estabelecendo ao mesmo tempo com muitos deles um relacionamento amistoso, de convívio e de liberdades. Ele era e gostava de afirmar-se um homem simples. Andava a pé na cidade em cabelo quando na sua época praticamente toda a gente usava chapéu. Vestia a sua samarra alentejana. Falava com os mais novos e os mais novos falavam com ele como se tivessem todos a mesma idade. Sentia-se bem com os jovens e os jovens sentiam-se bem convivendo com ele. No estudo, em iniciativas culturais, em conversas sobre os mais variados temas, em passeios, em fins de semana passados na praia. De sublinhar que nesses colectivos estavam sempre presentes, surgindo com uma espontaneidade correspondente ao pensamento e ao sentir da cada qual, os problemas da época.
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O sentido ético e humanista do seu pensamento traduzia-se, entre muitas outras coisas, pela valorização da coragem na afirmação da verdade científica (Galileu Galilei) ou das grandes figuras da Índia como Tagore e Gandi. Tinha particular preferência literária por Romain Rolland e aconselhava a muitos jovens a leitura de "Jean-Christophe". Não menosprezava porém a influência política directa. Numa época em que a censura à imprensa e a proibição da importação de publicações comunistas, ele conseguia receber e facilitava a leitura aos jovens de Le Monde, semanário dos conhecidos intelectuais comunistas franceses Henri Barbusse e Romain Rolland, intelectuais aos quais estava também muito directamente ligado como responsável e animador em Portugal do Movimento pela Paz Amsterdam-Pleyel dirigido por esses dois intelectuais franceses.
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O relacionamento que acabo de referir com B. Caraça tinha como adquirido que B. Caraça era comunista. Mas nas condições de clandestinidade a organização e os contactos no Partido eram compartimentados e nenhum membro do Partido se afirmava como tal, a não ser na sua ligação orgânica. De mim para mim, tinha por certo que B. Caraça era membro do Partido, mas não o poderia afirmar. O relacionamento partidário directo deu-se em 1943. Em 1941-42, época da reorganização do PCP, eu tinha de novo passado à clandestinidade e sido enviado como funcionário do Partido para o Norte do País. Em Outubro de 1942, tendo sido presos vários dirigentes do Partido, fui chamado de novo para Lisboa, a fim de integrar o Secretariado desfalcado com a prisão de Júlio Fogaça. Ora era precisamente Júlio Fogaça que assegurava na época a ligação partidária com B. Caraça. Fui eu encarregado de restabelece-la, o que sucedeu em 1943.
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No mundo então envolvido na 2.ª Guerra Mundial, 1943 foi um ano marcado em Portugal pelo impetuoso ascenso do movimento operário, a afirmação do PCP como um grande partido nacional e o empreendimento pelo Partido da unidade antifascista na luta pela liberdade e a democracia. B. Caraça deu nessa conjuntura uma contribuição em alguns aspectos determinante para alcançarmos com êxito tal objectivo.
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Lembro que o III Congresso do PCP (primeiro realizado na clandestinidade), noticiado no Avante! de Novembro de 1943, anunciava a criação do Movimento de Unidade Nacional Antifascista, e o Avante! de Janeiro de 1944 noticiava a formação do Conselho Nacional, orgão supremo do MUNAF.O êxito deveu-se em grande parte à acção de B. Caraça, como militante do Partido, graças à sua influência nos meios intelectuais e entre os antifascistas. Acompanhei muito de perto toda essa acção. (...) O Avante! de Janeiro de 1944 confirmando a criação do MUNAF anunciava a formação do Conselho Nacional em que inicialmente entrámos, como representantes do PCP, B. Caraça e eu próprio.
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O MUD (Movimento de Unidade Democrática) foi formado e desenvolveu-se como uma realização e expressão do MUNAF, aparecendo à luz do dia como um novo movimento e invocando o direito à legalidade. (...) De lembrar a Comissão Central do MUD (1946), que é de interesse citar, que contou na sua composição com Azevedo Gomes, Bento Caraça, Hélder Ribeiro, Maria Isabel Aboim Inglês, Fernando Mayer Garção, Manuel Mendes, Lobo Vilela, Alberto Dias, Manuel Tito de Morais, Demétrio Duarte, Luciano Serrão de Moura e Mário Soares. O MUD, assim como o MUD Juvenil, formado no seu desenvolvimento, foi perseguido e reprimido. B. Caraça foi demitido de professor, na vaga de demissões que atingiu também outros destacados antifascistas, alguns dos quais comunistas.
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Essa atitude (de apagar a ligação de Bento Caraça ao PCP) insere-se na gigantesca operação de falsificação da história a que assistimos actualmente. Escrevem-se volumes, artigos e conferências e pronunciam-se discursos e declarações tentanto branquear a ditadura, a sua natureza fascista, a sua natureza de classe, e todos os seus crimes. Falseia-se a história da heróica resistência antifascista, da luta pela liberdade e a democracia. Insulta-se a revolução de Abril, que a reacção acusa de ter sido causadora da situação desastrosa actual a que nos conduziu a política e governos de direita. Falseia-se a história do levantamento militar, do levantamento popular, das realizações e conquistas da revolução democrática. Falseia-se a história das actividades e do processo contra-revolucionário que conduziu à situação de desastre nacional em que actualmente o país se encontra. E em toda esta operação de falsificação da história, é linha de força o apagamento, o silêncio ou a grosseira deturpação e a calúnia contra o PCP. Aos falsificadores da história não convém que o povo português saiba que eram comunistas homens a quem tanto devem o povo, o país, a cultura, a conquista da liberdade e da democracia.
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