Thursday, October 04, 2012

1935: O ano da demissão de Abel Salazar (em cartas a Celestino da Costa) (2)

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Como lhe disse é desejo meu continuar os meus trabalhos na Faculdade livremente, mas é impossível! Os homens estão ferocíssimos, quer em Lisboa, quer na Faculdade que tem procedido indecentemente.
Em face disso, resolvi continuar os meus trabalhos cá fora, tendo já microscópio e os elementos necessários para reatá-los.
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Tudo se vai pois encaminhando: o Instituto é que se foi à vida. Renovo-lhe o meu pedido (se for possível, claramente) duma bolsa de estudos para a Estrada. A razão deste pedido é a guerra feroz que aqui me fazem na Faculdade, ninguém sabe porquê.
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Carta 49 (1935)
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O Ministro, em despacho, não só proibiu que eu fosse à Biblioteca da Faculdade, como até que fosse a qualquer dependência universitária. E ao mesmo tempo, em surdina, a Faculdade, ou esta gente dela que muito tem contribuído por detrás da cortina para isto, contínua a guerrear-me. Deram ordem (e afixaram-na) para que ninguém pudesse permanecer nos laboratórios depois das cinco horas, sob o pretexto de se dizer que eu ia para a Faculdade depois das cinco, o que é em absoluto falso. Nunca mais voltei lá, nem de dia nem de noite. É uma perfeita infâmia! Os canalhas o que estão é irritados por eu continuar a trabalhar como se nada fosse.
O meu caro amigo não faz idéia do que se tem passado nos bastidores, e a que ponto chega a torpeza de certos miseráveis. Creia que sou vítima de uma das maiores patifarias que se têm feito neste gênero.
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Carta 50 (1935, data da homenagem a Athias)
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A propósito, tenho dados seguros, testemunhados e documentados, que provam que, entre muitas outras pessoas, duas têm contribuído especialmente para a atmosfera que me foi criada. São elas o Hernâni Monteiro e o Leonardo Coimbra. Ficará surpreendido quando um dia lhe contar o que se tem passado, e o que têm feito e dito estes dois senhores. O último faz há muito tempo, pelos cafés e por toda a parte, uma campanha sistemática contra mim. O que ele tem dito e feito, se não estivesse documentado e testemunhado, seria inacreditável. E o mais singular ainda é o seguinte. O Governo sabe que toda esta campanha é tendenciosa, falsa, e que não há facto nenhum grave de que eu possa ser acusado. Pois bem o Governo que sabe, e que o diz em particular, deixa correr a campanha e serve-se dela porque isso lhe convém.
É uma verdadeira, uma autêntica chantagem, confessada pela própria gente da Situação, como lhe poderei provar. Servi ao Governo ou Situação, ou como se queira dizer, e isto dito por eles próprios, de «cabeça de turco» para manejos políticos. No meio desta miserável chantagem, a única acusação definida e concreta que a Situação contra mim formula, sem segredo, é a seguinte: «Não nos convém na cátedra professores que exerçam uma influência filosófica na massa dos estudantes.» Quer dizer, não admitem quem pensa livremente, mas apenas segundo os dogmas que eles impõem.
Mas como não querem pôr a questão leal e claramente, servem-se destes truques miseráveis. O meu 'bolchevismo', meu caro amigo, é isto apenas. Um dia porei tudo a claro. A campanha continua, apesar de eu estar há meses fechado em casa, sem falar a ninguém; proibido de ir à Escola, proibido de trabalhar na Litografia, proibido de fazer um curso no Silva Porto(*), proibido enfim de trabalhar seja no que for! É realmente, demais!
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(*) Salão Silva Porto, associação artística onde se realizavam exposições na Rua de Cedofeita.
Carta 51 (1935, já que Leonardo Coimbra faleceu no início de Janeiro de 1936)
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Escrevo-lhe hoje a propósito do destino do meu laboratório. O Instituto acabou oficialmente; mantém-se porém na realidade, porque eu continuo a orientá-lo e os assistentes a trabalhar. Quem me vale nesta situação é a D. Adelaide que estabelece a ligação comigo e continua a trabalhar sob a minha orientação. Desta forma, e com o plano já feito, a actividade do antigo Instituto continuará, embora reduzida.
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Para isto se agüentar venho-lhe pois perguntar se seria possível, a exemplo do que a Junta fez com o Pina, Álvaro Rodrigues e Tavares, conceder um subsídio ou bolsa para o fim acima indicado à D. Adelaide que há treze anos trabalha no Instituto sem nada receber.
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Ela ficaria praticamente agüentando e vigiando o laboratório nas circunstâncias actuais para evitar que se perca todo o meu esforço de tantos anos. Porque, se assim não for, sucederá o que já aconteceu quando estive doente, isto é, será tudo posto a saque e tudo desaparecerá.
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Carta 53 (1936, mesmo assunto)
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55
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Reafirmo-lhe o que já uma vez lhe disse, isto é, que nunca tive nem tenho ambições políticas; e que a minha vida é hoje o que sempre foi, inteiramente dedicada à ciência e a problemas e curiosidades intelectuais. Vivo, de resto, depois da minha saída da Faculdade num completo isolamento; passam-se semanas que não saio de casa onde trabalho. São raras as pessoas que aqui vêm, e raros os sítios onde vou.
Confesso-lhe que o que me irrita é não me consentirem em ir ao laboratório, ou pelo menos à Biblioteca do Instituto fazer as consultas bibliográficas, coisa perfeitamente estúpida e sem qualquer utilidade. Que mal poderia eu fazer na Biblioteca: lançar bombas?
O Governador Civil(*) disse-me que «Eles» estão com vontade de me deixar trabalhar (que generosidade!), mas que devo para isso dar-lhes a garantia de lhes comunicar tudo o que eu faço no laboratório em tal caso. Não só dei tal garantia, mas até que me comprometia a não receber lá ninguém e a ninguém falar. Apesar disso, ainda não tive até agora tal licença.
Ora isto embaraça-me, pois que, apesar de eu ter em casa um microscópio e preparações, a cada passo surge a necessidade de fazer novas preparações, ensaios e consultas bibliográficas; e esta proibição absurda tudo entrava.
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A Faculdade de Medicina está em completa decadência, um marasmo completo à mistura com burlas, comédias e misérias. Cinco ou seis vagas e a gente nova totalmente desiludida. Foi-se tudo ao fundo dos nossos velhos projectos: é triste! A charlatanice volta a tomar conta do terreno, apoiada na politiquice. Aqui é uma vergonha o que se está passando na Universidade.
Mas já há catedrático de Higiene no Conservatório de Música! Boa música é isto tudo. Lá se encaixou o Fernando Pires de Lima(**), que para isso de Rolão se fez salazarista. Está de resto tudo cheio de Pires de Limas: dizem os blagueurs que basta levantar uma pedra, logo sai debaixo um Pires de Lima. Uff! E o velhote(***), coitado, está totalmente gagá, mete pena.
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(*) Fernão Couceiro da Costa (1895-1957), catedrático de Matemática na Faculdade de Ciências do Porto, governador civil de 8 de Junho de 1935 a 30 de Junho de 1937.
(**) Fernando de Castro Pires de Lima (1908-1973), médico e etnógrafo, filho de Joaquim Alberto Pires de Lima; inflamado apoiante do Estado Novo, dele existe uma denúncia de Abel Salazar e do dr. Eduardo Santos Silva (filho) como «advogados da desordem, confusão e terror» no Arquivo da PIDE em 1938.
(***) Provavelmente Joaquim Alberto Pires de Lima que foi amigo constante de Abel Salazar e sofreu acidente vascular cerebral de que veio a recuperar parcialmente.
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Carta 55 (1936, mesmo assunto — livro de homenagem a Athias)
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Tudo reproduzido do livro, que se recomenda vivamente:
(Abel Salazar - 96 cartas a Celestino da Costa)